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GABRIEL GARCIA MARQUEZ – O VENENO DA MADRUGADA

R.Colini

GABRIEL GARCIA MARQUEZ – O VENENO DA MADRUGADA

Nas cidadelas fantásticas de GGM, as narrativas mágicas resistem e se sustentam pela eternidade.

“Quando abotoava o colarinho, o Sr. Carmichael viu o aviso pregado na parede do fundo: “É proibido falar de política”. Sacudiu dos ombros as pontas de cabelo, pendurou o guarda-chuva no braço e perguntou, apontando para o aviso:
– Não é com o senhor – disse o barbeiro. – Sabemos que o senhor é um homem imparcial.”

 

Nas cidadelas fantásticas de GGM, as narrativas mágicas resistem e se sustentam pela eternidade. Enquanto isso, no Brasil o realismo mágico dura o breve instante dos delírios destituídos da realidade. Em 2016 a prefeitura da cidade maior do país tentou proibir que taxistas falassem de política com os passageiros. Claudicamos, literariamente falando, com tal infertilidade das coisas.

O VENENO é um livro inesgotável em suas interpretações. Gostei dessa cena no barbeiro porque o diálogo acontece no dia em que as chuvas intermináveis obrigam os pobres da cidade a mudar suas casas para terrenos mais altos, pois as inundações estão atingindo suas moradias próximas ao rio. É isso mesmo: mudam as casas inteiras. Os homens vão na frente, carregando as habitações pelas estacas e logo depois uma procissão de crianças e mulheres carregam o mobiliário: cadeiras velhas, panelas, gamelas.

O senhor Carmichael observa a cena:

 

“Os homens que transportavam as casas, afundados no barro até os tornozelos, passaram tropeçando e roçando as paredes da barbearia. O Sr. Carmichael viu pela janela o interior desmantelado de uma das casas, um dormitório inteiramente despojado de sua intimidade, e sentiu-se invadido por uma sensação de desastre.”

 

O ponto é que a miséria, nas nossas américas, é feita dessa substância: mudam apenas de lugar, em uma peregrinação interminável de cacarecos e restos de gente.

Pelo menos dois aspectos merecem outras postagens. Não cabe nesse espaço.

Um, diz respeito à política (a devastação provocada pelas transformações apenas ilusórias da política), que é algo maciçamente presente no livro: paira sobre o vilarejo como as nuvens carregadas que quase roçam a cabeça das pessoas.

Outro é a distribuição anônima de panfletos com notícias falsas, fofocas e boatos virais que pulverizam as vidas privadas e afetam os habitantes de forma catastrófica. Garcia Marquez retoma os bilhetes dos romances do século XIX e dá um salto no tempo, para muito além de quando publicou. Dá a impressão de que está escrevendo sobre as redes sociais.

GGM escreveu em 1962, quando as capacidades somadas dos computadores da NASA e do Pentágono eram menores do que a de um smartphone.