Modo Leitura

Ser e pensar

Um pouco mais sobre mim e minha vida.

Sobre o Autor

Um pouco mais de mim mesmo.

Os autores se revelam muito mais naquilo que escrevem do que na folha corrida dos CVs. Tímidos e impetuosos, galinhas e vexados, uns que nunca beberam e outros em cujo sangue trafegava mais álcool que proteína. Os gêneros e os gênios estão na diversidade, pois os escritores que amo são tão diferentes entre si como somos uns dos outros. Ou seja, CV diz pouco, mas vamos lá:

Office boy no Bradesco com 14 anos, dirigente estudantil, aluno de graduações não concluídas na USP, bancário novamente, gráfico, jornalista na folha de São Paulo, jornalista em um jornal que acho que não existe mais, corretor de imóveis, representante comercial, graduação em direito – também não concluída –, dono de empresa, dono de empresa quebrada, eletricista clandestino na Itália, de novo dono empresa, dessa vez deu certo, e, finalmente, o retorno àquilo que pretendi quando tinha 18 anos, nos laboratórios de redação literária do Museu Lasar Segall. Escrever.

Isso diz pouco, e se eu tiver um único leitor ou uma única leitora, provavelmente (se gostarem do que leram), desejarão saber um pouco mais. C.V. não vale muito nesse caso; o contexto diz mais. Afinal, dos livros que gostei, sempre quis conhecer sobre a vida dos autores e imbricar a história na estória.

“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos: minhas primeiras pátrias foram os livros.”

“Memórias de Adriano” - Maguerite Yourcenar.

Devo isso a você, ainda que seja um único leitor, uma única leitora. Lá vai:

Quando criança ouvi de um parente a frase que não deveria ser dita a ninguém com 10 anos de idade: “agora você é o chefe da família”. Meu amigo Fred diz que eu gosto da versão da música Patches (Marvin, feita pelos Titãs) por causa desse episódio. Dispenso o heroísmo. É uma merda a gente ouvir isso com 10 anos.

Morto o pai, acaba a infância em Taguatinga feita de amizades na rua de terra batida e o cerrado intocado onde a gente se aventurava de bicicleta, em um ambiente onde tudo o que acontecia na rua, ficava na rua. A cidade era nova, e cada menino vinha de um canto do país, de forma que na minha infância nunca testemunhei racismo de cor ou origem.

Mas quando cheguei em São Paulo, eu era único que vinha de outra cidade, e quando a professora perguntou se havia alguém novo na classe, e eu disse de onde era, todos – não é exagero –, todos na sala olharam na minha direção como se um marciano houvesse acabado de aterrissar na escola pública do bairro operário. O silêncio foi intenso e as piadas não demoraram. Aguentei calado, mas afinal perdeu a graça; eu me enturmei e passou.

Lá fiz eternos amigos que nunca mais ouvi falar, que é o pior crime da geração que cresceu antes da internet. Quando se olha a fotografia da turma da sexta série, percebo que, da minha classe, eu me dei razoavelmente bem, Vicenzo virou dono de restaurante; André, professor na USP; Roberto foi para a casa da tia nos Estados Unidos, pagou os estudos jogando futebol na universidade e virou executivo financeiro em Luxemburgo. O amado amigo Carlinhos se virou por aí; dele ainda tive algumas notícias.

Da foto da turma do meu irmão do meio, tirada 4 anos depois, uma boa parte dos alunos retratados teve que se virar como um cão para sobreviver. Alguns foram encarcerados e ele é um dos poucos que se formou, porque teve a sorte de estudar no Senai e conseguiu um emprego mais ou menos decente. Cursou tardiamente uma faculdade de engenharia, mas está longe da estabilidade que todos mereceriam em sua idade.

Da foto do meu irmão mais jovem, 8 anos depois, se você riscar com um lápis vermelho aqueles que morreram, não sobra quase ninguém. A maioria, assassinados. Ele mesmo já não está lá.

As fotos escolares sintetizam a história de uma cidade que mudou de vocação sem decidir para onde ir. As fábricas que recebiam às seis da manhã as legiões que partiam dos bairros, ficaram por 30 anos acumulando lodo, musgo e mato. Agora, aos poucos, estão virando condomínios, sem que se saiba onde esse povo todo vai arrumar ocupação e sem que se saiba que tipo de cidade é essa.

Não ia demorar para o ensino público virar uma draga, mas daqueles anos eu lembro de professores espetaculares no segundo grau, e a força que eles davam para a gente seguir adiante. Era preciso fazer um esforço extraordinário, mas ainda se conseguia entrar na USP sem cursinho, em uma época em que o ensino superior se resumia a meia dúzia de universidades privadas e duas públicas.

Fui cumprir minhas profecias autorrealizáveis no dia seguinte ao aniversário de 14 anos, quando tirei a carteira de trabalho e fui trabalhar como um condenado na área de turismo do Bradesco, percorrendo a pé uns 20 quilômetros por dia fazendo entregas de passagens aéreas e vouchers no centro da cidade. Estudava à noite e era comum perder o horário das aulas porque me obrigavam a fazer entregas depois das 18:00hs. Eu era tímido, e descobri que isso era uma desvantagem competitiva quando a gerente banco me obrigou a trabalhar depois do horário em um dia em que eu
tinha prova. Aleguei para meu chefe, o Antônio: “manda o Vagner, porque hoje eu
tenho prova”. Vagner era charmoso e contava para a gerente suas histórias pessoais,
como uma avó doente e sei lá mais o quê; sei lá se era verdade, mas isso
funcionava. Antônio a procurou, relatou o meu problema e eu a vi, no fundo do
salão, dar de ombros e dizer: “O Vagner não, manda o outro”. A memória da dor é
mais perene do que a do prazer. Até hoje eu lembro o nome completo dessa filha
de uma cabra, que omito por motivos óbvios. Não quero reproduzir aqui sua
iniquidade e covardia.

A gente faz do limão uma limonada. Percebi que eu estava condenado a nada, com aquela profissão e, devido ao meu jeito, nenhum futuro no banco. O salário ajudava em casa, mas era uma mixaria. Pedi a conta, determinado a passar no vestibular. Me virei durante os dois anos finais do segundo grau com uma bicicleta Caloi 10 e o dinheiro do fundo de garantia. Minha mãe aguentava o tranco com a pensão de viúva e minha avó ainda trabalhava.

Deu certo. Da escola pública de classe média no Bosque da Saúde eu fui direto para a USP. Mas nessa idade são tantas as sereias cantando futuros promissores, que entre as aulas e as apostilas usadas de cursinho pré-vestibular, arranjei tempo para escrever, virei dirigente estudantil e conheci a mulher de minha vida. Mesmo assim, achava o mundo grande demais para nele colocar uma só pretensão.

Trabalhei no Banco Nacional, que quebrou, trabalhei em uma gráfica e editora a convite do amigo Edson Teles, aprendi um pouco de edição e diagramação, até que mandei um Currículo espetacular e carregado de adjetivos para uma vaga na Folha de S.Paulo. Ainda estava no segundo semestre da USP, que larguei sem pensar duas vezes para ocupar a vaga.

Marcelo Leite decidiu me contratar porque a experiência na militância estudantil e um certo conhecimento de política o impressionou. De passagem pela editoria política, eu identifiquei uns sujeitos em fotos espalhadas em cima da mesa que ninguém imaginava quem eram. A Paulinha olhou de forma estranha quando eu mencionei os nomes dos caras, que anos depois estariam no centro do poder: “olha, o fulano e o sicrano...”. Acho que ela se sentiu desprestigiada por um foca, ou então achou que eu fosse arrogante. Era o ano da graça de 1987. Ou 1988. Depois confiro.

Eu era o caçula na redação. Recorde que foi quebrado pela Clarissa Rossi, um ano depois. O salário era uma enormidade para quem nunca teve onde cair morto, e eu gastava parte desse dinheiro interminável bancando bebida para os amigos nas madrugadas do Bexiga.

Eu entrei na Folha inspirado pelas histórias românticas de muitos escritores, mas cheguei tarde. O Cláudio Abramo tinha caído fora, Carlos Drummond era tratado como um gagá e a redação era modernizada por jovens de paletó com ombreiras enormes e olhos brilhantes. A grana era muito boa, mas eu ainda era jovem demais para ser covarde.

Depois que pedi demissão (e o mais importante: depois que a grana acabou), eu achei que não era assim tão jovem, e comecei a me virar. Entrei de novo na USP e aí veio aquele monte de coisas que eu mencionei: vendedor, corretor, representante, dono de empresa. Abandonei a USP de novo e fui para um curso de direito, para o caso do fracasso completo, porque eu não tinha salário fixo e sempre me dei bem em concursos e vestibulares. Era a carta na manga para a merda total. Mas as coisas entraram no eixo e eu caí fora do direito também.

Muito tempo depois, com dois filhos e a minha segunda empresa na UTI, deixei a família aqui e fui batalhar grana na Itália, como clandestino. Foi foda, mas aí já é uma outra história, e já estou estourando as 1.500 palavras que meu guru de mídia digital disse que era o máximo que eu deveria escrever em cada artigo.

Sempre gostei do que fiz, e fiz razoavelmente bem todas essas coisas, mas nunca fiz o que mais gostava. Escrever.

Agora é a hora.

Tudo o que foi dito, porém, talvez não baste para que se entenda (e que eu mesmo entenda) aqueles pequenos e breves momentos mágicos em que uma vida se transforma.

Há uma única coisa que, dita, talvez baste. Foi quando, um ano após a morte de meu pai, a família veio se abrigar em São Paulo, em uma quitinete no sétimo andar de frente para o minhocão, onde a fuligem se acumulava mais dentro que fora.

Eu tinha onze anos e minha avó me levou a uma biblioteca pública. Eu pensava no preço daquilo tudo, quanto custaria, e ela me disse que era de graça e fez minha inscrição com a certidão de nascimento.

O cheiro de cera dos móveis, o piso de madeira brilhante, as mesas para consulta, os arquivos com as fichas de papel – que, como coisa encantada, mostrava a direção dos livros –, as estantes repletas. Aquilo me arrebatou de forma permanente.

Eu não tenho dúvida do que aquele momento significou em minha vida.

Foi ali que eu passei a me sentir gente.

E desde então jamais fiquei sem a companhia de um livro.