Uma viagem entre a pinga e o Kilimanjaro
Crônica de uma viagem: exceto os nomes, o mais foi assim mesmo.
Depois de escalas na Etiópia e no Quênia, em aviões que diminuíam de categoria até chegar ao teco-teco da última escala, cheguei em Moshi, na Tanzânia. Passava pouco da meia noite e não foi difícil encontrar o motorista que me levaria ao hotel: havia apenas dois homens na área de desembarque. Um segurava uma folha de tamanho A4 com o nome do passageiro que dava para ler de longe. O outro mantinha um bilhete voltado para baixo, como se tivesse vergonha de segurá-lo mais alto. Se ele não fosse meu homem, pensei, eu estaria em apuros porque era um dos últimos no saguão e só possuía o nome do hotel, largado em algum lugar dentro da mochila, pois confiava que não haveria furo no translado. Me aproximei do homem e ele me entregou o bilhete: um garrancho manuscrito com letras pequenas. Era meu nome.
O carro – eufemismo é ótimo para a literatura, mas um pouco mais complicado na vida real –, era velho. Sem eufemismo, caía aos pedaços. Depois de colocar minha marinheira (aquela mochila comprida onde a gente bota todo o necessário para uma expedição em montanha) no porta-malas, que fechou depois de umas cinco tentativas, eu disse que queria sentar na frente. Queria puxar conversa. Foi à toa, porque descobri que o motorista conhecia meia dúzia de palavras em inglês, ou fingia isso.
O motorista voltou ao bagageiro e arrancou um pneu. Eu não entendia nada, enquanto ele colocava o pneu no chão e dava cacetadas para fechar de novo a marinheira lá dentro. O carro era de duas portas. Ao abrir a do passageiro, vi que o banco estava solto. O pneu foi colocado entre o encosto e o banco de trás: servia para dar apoio. Nos solavancos, eu pulava junto com o banco e qualquer freada brusca seria suficiente para me jogar pela janela. Achei bacana. A viagem começava do jeito que eu gosto.
Fabrício, o guia brasileiro, esperava no hotel e me deu um abraço. Os guias de montanha precisam possuir algumas habilidades. Além da força física e conhecimento técnico na montanha, é necessário o gosto genuíno em fazer amizades locais, paciência para aguentar os clientes (tipo eu), bom humor e... paciência com os clientes. O Fabrício é tudo isso.
No dia seguinte, no café da manhã, Fabrício me apresentou ao Fontana, jornalista de São Paulo que ia para a montanha pela primeira vez. O hotel era ocupado na totalidade por expedições para o Kilimanjaro. Lá, os grupos se reuniam por dois ou três dias para os preparativos finais e preleções dos guias. Achei bacana ver os jovens gringos com livros e moleskines: parecia que eles registravam cada momento da viagem. Fontana preferiu ficar no hotel e Fabrício tinha que sair para fazer algumas compras e acertar licenças para a montanha. Perguntou se eu queria ir junto. “Imagina. Só se for agora mesmo.”
Almoçamos na cidade e retornamos no final da tarde. Junto conosco foi o guia local, que nos acompanharia na expedição. Era a segunda vez de Fabrício no Kilimanjaro, e parecia que era amigo do guia desde a vida inteira.
O guia, cujo nome era mais ou menos M’arcuf, coisa assim, mas que o Fabrício chamava de Marcos e eu tentei Marcão, mas acho que ele não gostou do som anasalado, que devia soar mal no idioma. Fabrício tinha um repertório de palavras com os caras que não sei como ele conseguiu em tão pouco tempo. Cantava músicas inteiras e conseguia trocar algumas frases.
Marcos levou a gente para um bar a quinhentos metros do hotel. O bar era frequentado pela população local, e eu me senti um estranho, intrometido e feio. Achei que estávamos invadindo a intimidade dos clientes. Fabrício garantiu que não.
Havia uma tevê ligada em um programa de clipes musicais e em pouco tempo ninguém reparava na gente. Era raro os gringos aparecerem por lá: parecia que não davam muita importância para a cultura local: só dedicavam a ela as lentes de suas máquinas fotográficas. Acho que a prioridade deles era somente a montanha. Tipo: “dane-se o lugar. Não estamos aqui para isso”. O Fabrício não é assim, e sempre faz amizade por onde vai e já tinha frequentado esse bar: um dote social que eu não tenho, e que ele é mestre.
Cerveja de banana é ruim demais. Mas em Roma, faça como os romanos... Estava um clima de festa, a cerveja era barata demais e patrocinamos algumas rodadas. Parecia um boteco animado no Brasil. Um jovem sentou na mesa: era conhecido ou amigo do Marcos, e assim como fizemos com os demais, Fabrício ofereceu uma cerveja com a melhor das intenções e seu sorriso franco.
O jovem fez uma cara de dar medo. Não foi um mal-estar momentâneo em que a pessoa incomodada olha para o chão ou para o lado. Ele olhava nos olhos da gente, inquieto e com expressão de rancor. Talvez ódio. Eu não ouvi a explicação que Marcos deu para Fabrício no meio da barulheira, e soube logo em seguida que ele era muçulmano. Mas o constrangimento não durou muito. Com sua habilidade, Fabrício foi ao balcão e pediu uma fanta sabor abacaxi (não é ruim como a cerveja de banana) e botou na mesa, deixando claro que entendia o erro e se desculpava. O jovem sorriu, e sorriso é uma coisa que a gente sabe na hora se é sincero ou sarcástico. Era sincero, e tomamos várias. Ele, o jovem, repetiu a fanta. Essa história de brasileiro ser um tipo aberto, social e que se entrosa fácil, eu não dou muita bola. Mas quando a gente vê acontecer em uma situação altamente complicada, dá o que pensar.
De volta para o hotel, formos para o bar e terminamos a noite tomando cerveja de verdade. Estávamos bêbados – outro eufemismo – como gambás. Aliás, gambás bebem? Porque isso? Mas eu estava bêbado e não consegui concluir o raciocínio.
Fabrício não parava de fazer piadas com o garçom, que era a cara do Robinho do Santos. Era mesmo! Igualzinho! Como éramos os últimos no bar do hotel, Robinho se sentou à mesa. Lá pela meia-noite, Fabrício ficou inquieto. Estava preocupado com um casal do interior de São Paulo, que devia estar desembarcando. Eu não devia ter contado naquele momento, mas comentei sobre o motorista, e duvidei que caberiam duas marinheiras no carro. Fabrício entrou em um tipo de pânico e não havia muito o que fazer. Conseguiu um táxi até o aeroporto, e lá não encontrou ninguém. Ele deve ter passado a noite em claro, tenho certeza.
Tatiana e o marido, Roberto, chegaram logo cedo de táxi. Na noite anterior, o motorista não apareceu no saguão e eles decidiram ficar em um hotel próximo ao aeroporto: acharam mais seguro do que pedir um táxi de madrugada para o nosso hotel. O grupo estava completo. No dia seguinte partiríamos para a montanha. Havia, portanto, esse dia livre. Foi o dia da pinga.
Haviam programado para aquela manhã uma saída para o grupo conhecer Moshi e almoçar na cidade. Paramos ao lado de um mercado ao ar livre, de onde iríamos a pé até o centro (centrinho) do lugar. O normal seria contornar a feira, que ficava em frente a uma favela. Digo favela para dar uma imagem, pois deveria ser ofensiva qualquer comparação.
Marcos perguntou se queríamos atravessar pelo meio do bairro. Olhamos para o Fabrício (a hierarquia em expedições é coisa séria, e quem não a respeita não serve para a montanha). “No problem”, insistiu Marcos.
Caminhando pelas vielas, eu comentei com o jornalista paulistano, com quem tive afinidades instantâneas, sobre alguns gringos do hotel que estavam visitando a feira olharam assustados enquanto a gente partia para o meio do bairro. Eu disse a ele que havia passado tanto pela Ceilândia na minha infância, que aquele lugar me dava reminiscências e familiaridade. Na lata, ele disse que sentiu a mesma coisa. Passou a infância na zona leste, em uma época em que a região se expandia, e nada daquilo que víamos nos era estranho.
Embora seja indigno viver com esgoto a céu aberto, aquele liquidozinho familiar que eu já conhecia pelas cidades satélites de Brasília – cinza claro que parece aquarela escoando pelas sarjetas –, havia nos moradores a normalidade que todos nos impomos em relação ao que a vida nos impõe. A dignidade de quem está em seu lugar, sua casa: seu lar. Isso estava presente nos rostos de quem cruzamos. Talvez fosse raro turistas por ali, mas ninguém deu bola. Talvez porque não paramos para encher o saco das pessoas nem tiramos fotos. É o mínimo de respeito exigido e cuja postura eles pareciam apreciar. Não havia grana envolvida, do tipo tour em favelas. E esse é um detalhe importante. Agora vou pular a história da pinga, que aconteceu no meio dessa tarde, depois que voltamos ao hotel. Vou contar sobre a montanha.
Não. Nós não nos deparamos com a vista deslumbrante do Kilimanjaro, fotografado a partir da savana com suas neves eternas: Esse panorama se vê do Quênia, enquanto os roteiros de escalada seguem pela Tanzânia. Nesse lado, o contraforte da montanha fornece abrigo para uma floresta fechada que lembra a mata atlântica. Mas a partir dali, acontece uma transformação tão profunda, durante os três dias de caminhada, que é impossível ficar indiferente.
Com as mochilas no chão, começamos os preparativos. Primeiro trocamos as sandálias por botas. Depois, um olhando para o outro, sem saber direito se era o certo a se fazer, tiramos alguns casacos. Marcos apontou para os casacos e as mochilas: entendemos que era para guardar tudo. Assim, começamos de camiseta.
No clima quente da floresta, a trilha permeava uma barreira vegetal maciça, entre riachos e cachoeiras. Eu procurava lembrar o trecho em que Joseph Conrad descreve de forma impressionante uma muralha vegetal que se avistava a partir do barco, que era a porta de entrada para aqueles que iam encarar o Coração das Trevas.
No final do dia, todo mundo já havia retirado os casacos da mochila. Havíamos subido 700 metros até o acampamento, onde a noite era tão fria que só eu tive ânimo de sair para ficar uns quarenta minutos olhando na direção do breu do céu com tantas estrelas diamantadas, como se voltássemos no tempo em que Lucy caminhou em um local não muito longe dali. O melhor das viagens são as digressões, mas estava frio demais: fui dormir.
Os próximos dias foram uma espécie de viagem aos elementos, como se cruzássemos o tempo. A altitude aumentava na proporção em que a vida ficava rarefeita como o ar, e as raras plantas se adaptaram a um ciclo eterno de sol abrasante e gelo noturno. Um pouco adiante, quando nem plantas sobreviviam por causa da altitude, as rochas e a neblina provocavam estranhas sensações em um lugar onde a vida do planeta não chegou. E nem chegaria, se desde os primórdios os homens curiosos não ousassem se aventurar em um ambiente que lembra os relatos de sonhos dos pacientes de Freud.
Fontana, o jornalista, que era um par de anos mais velho, comentou sobre a vegetação exótica: umas árvores parrudas e cabeludas. Aquilo lhe lembrava os cenários de antigas séries de ficção científica de quando éramos crianças. Star Trek e Perdidos no Espaço poderiam ser filmados ali perfeitamente. Eu concordei e dei risada, dizendo que só faltava uma bola gosmenta peluda aparecer e atacar a gente.
Quando, mais alto, onde o mundo parecia feito de rocha e névoa, eu lembrei um filme mais recente, que é um dos episódios de Tomb Raider, com a Angelina Jolie, quando eles partem em busca da caixa de Pandora. No filme, eles entram em uma montanha fantasmagórica, onde as sombras e as rochas parecem imunes ao tempo dos homens. Porque, no fundo, só existe esse tipo de tempo. Mas ali não era lugar para homem algum. Ele concordou.
O Kilimanjaro já era visível, e bem de longe era possível avistar, um pouco para o lado direito, uma estria muito fina, finíssima, que era a trilha. Uma pirambeira duríssima: eu me toquei na hora.
No meio da tarde chegamos no acampamento base. Lá, a gente fica em um alojamento coletivo, que serve para descansar antes da etapa final. Agora era comer, dormir um pouco e partir à meia noite para o cume. Estávamos a 4.700 metros, e geralmente se aguenta bem essa altitude porque a aclimatação foi acontecendo durante os três dias de percurso.
Lá pelas oito ou nove horas da noite, estava escuro e lá fora fazia um frio abaixo de zero, no meio da África: muito legal. Tatiana começou a confundir o marido com o irmão. Não só trocava os nomes, mas falava com o marido como se ele fosse seu irmão. Depois passou a falar sozinha, com a língua enrolada. Finalmente, os braços começaram a se mover de forma desordenada: ela começava a perder o controle. Sinal de alerta total: era sintomas do mal de altitude, hipóxia, e o único remédio é descer com urgência. Não tem refresco. Está faltando oxigênio no cérebro e a coisa não costuma terminar bem.
A equipe de guia locais era composta por quatro pessoas. Marcos era o líder. Dois deles desceram com Tatiana e o marido. Nos momentos de lucidez, ela chorava muito, porque havia se preparado durante seis meses para realizar o sonho de subir a montanha mais alta da África.
Depois que retornamos, fomos visitá-los em um hotel que eles escolheram para descansar antes do retorno. Ela estava bem, e bola pra frente. Jantamos pizza. Tatiana é médica, e a gente não sabe se ela se medicou preventivamente para aguentar a altitude. Isso mascara o mal-estar e esconde os sintomas. Pode ser, pode não ser, mas o susto havia passado. Para nós e para o casal.
Fizemos o cume. A pirambeira era dos diabos, eu havia treinado pouco nos meses anteriores e estava podre. Mas lá em cima, com a visão do topo da África em 360 graus e a montanha projetando sua sombra em forma de pirâmide pelas vastidões do continente, a gente esquece a dor. A memória da dor é curta. É preciso ver para sentir.
Agora a pinga.
Deixei o assunto para o final porque ele representa a transição entre a geografia física e a humana. A física, eu contei acima.
Depois do almoço no centro de Moshi, a turma foi tirar uma soneca. Estavam todos ansiosos, sabendo que o dia seguinte seria o primeiro na montanha. Fazia calor e Fabrício perguntou a Marcos se havia algum lugar para a gente nadar. “No problem”. Alguns metros adiante, na rua de terra batida do Hotel, existia uma trilha que ia para o meio do mato. Não era uma floresta fechada, como no sopé do Kilimanjaro: parecia uma área de arrozais, com diversos campos alagados e uma espécie de capim que batia na altura da cintura. Na medida em que nos aprofundávamos na região, o cenário lembrava um filme do Vietnã, com os camponeses concentrados e cabisbaixos, cuidando das plantações.
Fabrício ficou inquieto. Água, nadar, rio, banho, lago. Repetia em inglês enquanto Marcos parecia não dar bola. Não havia indício algum – como o som de uma corredeira ou cachoeira –, da existência de rio por ali.
Fora de seu elemento natural, que é a montanha, Fabrício estava tenso e dizia “Ele não entendeu o que a gente pediu”, e eu concordei. Não há resposta para explicar porque Marcos nos levou até ali. Era impossível ele ter feito alguma confusão, até mesmo porque o lugar para onde nos levou não possui a menor semelhança em inglês nem em qualquer outro idioma com um lugar para nadar.
Havia quatro jovens acocorados em uma clareira. O mais velho deveria ter uns vinte anos. Uma lata grande de óleo de cozinha fervia um caldo onde colocaram pedaços de uma galinha, cuja cabeça, decepada e fresca, estava ao lado de um facão. Uma tela pequena funcionava como gaiola para abrigar outra galinha, viva, indiferente. Com algumas tábuas desconjuntadas eles construíram um abrigo de um metro e meio de altura e pouco mais largo que uma casa de cachorros. Dentro, fervia uma lata de onde saía um tubo.
Ninguém nos apresentou a ninguém. “Que diabos estamos fazendo aqui?” eu perguntei para um Fabrício também perplexo. Ele perguntou com cautela “O que estamos fazendo aqui?” Marcos respondeu que os caras eram amigos; só disse isso.
Marcos provavelmente nos apresentava ao grupo, comentando algo em Suaíli enquanto apontava na nossa direção. Eu dei alguns passos em volta, olhei na direção de onde chegamos, e indiquei ao Fabrício que talvez fosse hora de ir embora, afinal, a última coisa que havia naquele estranho ambiente era um lugar para nadar.
Um dos caras falou mais ou menos o seguinte: “drink. Inga”. Não sorriu. Repetiu a mesma coisa. Inga. Fazia uma expressão séria como se aquele fosse um assunto fundamental para o qual aguardava nossa resposta.
Dessa vez a sacada foi minha. Observei a lata com o tubo que fervia precariamente sob uma fogueira de gravetos. Associei aquilo com a caneca de lata e enferrujada nas bordas que o jovem segurava. Disparei animado:
– Pinga!
Os caras sorriram. Como uma coisa aparentemente tão besta pôde ser tão excitante, a ponto de criar algo próximo de entendimento ou proximidade entre mundos tão diferentes?
– Inga!
Eu corrigi: Pinga!
– Pinga! Pinga!
Me passaram a caneca. Eu sorria: estava feliz por ter adivinhado o que eles queriam dizer para a gente. Fabrício falou que não ia beber. Eu disse “Com certeza você vai beber. Nem pense na desfeita”.
Eu não gosto de pinga pura. Mas é claro que sei o seu sabor. Mas aquele negócio tinha o gosto entre gasolina e etanol, temperado pelo metal da caneca. Bebi de um gole e fiz um gesto de aprovação. Pinga! Fabrício fez a mesma coisa, mas tossiu, quase engasgou, e os caras riram.
Então nos contaram um pouco do que eles faziam ali. Poucas palavras. Porém, mais não era necessário.
No Work for people like us.
Marcos ajudava na tradução quando não dava para entender. Os caras se reuniam ali, que era o canto deles, porque não havia, entendi, nada que pudessem fazer. Lá, eles fabricavam a pinga – pelo volume, creio que era somente para consumo próprio – e preparavam comida. Naquele dia era galinhada. Passavam o dia por ali porque não havia mais o que fazer, não havia para onde ir e não havia horizonte além da clareira.
Uma das palavras que eu considero das mais fortes na língua, representava, nítida, a vida daqueles jovens: deserdados. Não se trata de ausência de pais ou legado, mas algo pior: deserdamento é a ausência de futuro.
No future for people like us.
Apertamos a mão de um por um e fomos embora.
Jamais soube se Marcos queria mostrar um pouco daquilo que julgava a realidade profunda de seu país, que merecia, também ela, ser conhecida. Se foi isso, foi um gesto de intimidade. Ou, se nos levou para uma espécie de julgamento em uma clareira isolada e distante.
No hotel, uma placa enorme informava que os turistas não deveriam levar os passaportes originais nem quantidades de dinheiro além do básico. Todo lugar apresenta alguns perigos, mas o hemisfério sul, sabemos em casa, é complicado. Contudo, mencionamos que queríamos pagar pela pinga e eles recusaram.
Todos os cenários podem ser verdadeiros e não excludentes. Ou então pode ter sido outro o motivo, não imaginado, o que fez Marcos nos levar até ali. Porque não havia como ele confundir um rio com aquele lugar.
Tentamos manter o pensamento lógico em todos os contextos: às vezes é o que mantém fios tênues de esperança frente ao imponderável e assustador. O minha tranquilidade era sustentada por uma razão:
Eu sabia que Marcos receberia a maior parte de seu pagamento após a expedição. Além do quê, é tradição na montanha que os clientes façam uma vaquinha ao final como agradecimento aos guias locais. Por isso, tenho certeza que Marcos quis nos mostrar aquilo que o ambiente protegido do hotel não revelava. Mas isso nunca saberei. O fato é que, através da distância proporcionada pela memória, tenho certeza que aquele não era um lugar para ser visitado. Se estou certo, foi um convite.
Quando chegamos da montanha, de volta ao hotel, estávamos penalizados pelos guias que escalaram com tênis velhos as escarpas do Kilimanjaro com temperatura muito abaixo de zero. Doamos as botas meia-vida (costumamos levar dois pares para contingências). Fabrício doou a dele, que era quase nova. Tinha feito a mesma coisa no ano anterior (seu primeiro de Kilimanjaro) e acredito que continuou fazendo pelos anos que seguiram. Alguns gringos (a minoria: é preciso ser verdadeiro) faziam o mesmo, e por isso acho que os guias revendiam as botas, porque daquela que o Fabrício havia doado no ano anterior, nem sinal: Marcos seguia com seu tênis velho. Com certeza, fez bom uso e, se a vendeu, nem por isso o pouco que deixamos deixou de ser muito útil para eles. Porque, em viagens para esses lugares, costumamos levar muito mais do que deixamos, nesses ermos entremeados de desolação.
A cerveja de banana e a pinga da clareira foram eventos felizardos, do tipo que nos permite contar algo mais. E que, às vezes, nos proporcionam a sorte de ser um pouco mais que turistas.
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