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O MEDO, A MORTE E OS ÓDIOS

R.Colini

O MEDO, A MORTE E OS ÓDIOS

Sabe aquela história de yin e yang? Amor e ódio e bem e mal? Seria mais fácil entender o mundo dessa forma...

CAETANO VELOSO – O QUERERES

JOSÉ SARAMAGO – O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

YASUNI KAWABATA – O PÁIS DAS NEVES

  

Sabe aquela história de yin e yang? Amor e ódio e bem e mal? Seria mais fácil entender o mundo dessa forma, só que ele não é tão simples como nossas paixões, ou aquilo que chamamos equivocadamente de instinto.

Mesmo isso, que estou chamando de paixão, está longe da simplicidade oferecida pelas polarizações. É apenas sua parte mais superficial, que pode funcionar como válvula de escape contra as pressões do mundo, onde fica mais cômodo dividir tudo entre duas torcidas. É um FLAxFLU existencial. Isso está na moda.

É cômodo por ser fácil. Por ser fácil, enganoso. Pois, pensar é que nem puxar ferro, só que mais trabalhoso. A paleta de cores da vida possui gradações infinitas de tons, a ponto que certa tonalidade de azul seja percebida por uma única pessoa nesse vasto mundo.

Mas, a partir dessa miríade de cores, se a gente fizer o caminho inverso até chegar do lado de lá do prisma, todas as cores tornam-se luz branca. E além dela, há o espaço vazio, frio e escuro.

Pois é: polarizamos de novo.

Não tem problema: mesmo nesse momento imaginário em que tudo é cara ou coroa, tem literatura. Afinal, disso são feitos nossos quereres:

CAETANO VELOSO, O QUERERES

Onde queres o ato, eu sou o espírito
E onde queres ternura, eu sou tesão
Onde queres o livre, decassílabo
E onde buscas o anjo, sou mulher
Onde queres prazer, sou o que dói
E onde queres tortura, mansidão
Onde queres um lar, revolução
E onde queres bandido, sou herói

 

Só que:

 

Mas a vida é real e é de viés
E vê só que cilada o amor me armou
Eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer
Ah! Bruta flor, bruta flor

 

Mas a vida é real, e... voltamos para o lado de cá do prisma.

Estamos além do amor e da morte, embora estejam eles, em seu estado bruto, despejando pulsões que desconhecemos. Eros e Tanatos.

É meio assustador pensar que desejamos a morte de quem amamos. Nas sutilezas do discurso, quando dizemos a alguém, “quero que você se exploda!”, lá no fundo queremos isso mesmo. É raro dizer “quero que você morra!”, mas dá na mesma. Sutilezas da linguagem e do inconsciente.

Desejamos a morte de quem amamos? É bem capaz. Seríamos capazes de matar? É bem incapaz. Pais, irmãos, amigos e amantes. O nosso inconsciente é implacável tipo filme de bang-bang, mas a maioria de nós lidamos com isso e pranteamos um querido que se vai com dor redobrada por essa culpa inconsciente.

Mas essas pulsões da vida são interrompidas quando encaramos o perigo, a morte, o medo em sua pureza absoluta. Nessa hora, nos revelamos. Demonstramos nossas fraquezas, as mesmas de quando éramos crianças assustadas diante de um mundo apavorante.

Pode ser um terremoto ou um incêndio. O primeiro, criou-o Saramago. O segundo, Kawabata. Diante da iminência da morte, nos segundos fatais de uma existência, o lirismo desses autores leva a melhor.

Duas cenas.

 Um homem e uma mulher. Entre eles, súbito, o medo.

JOSÉ SARAMAGO, O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

“... estava a Lídia deitada quando se sentiu o abalo de terra...
...Ricardo Reis e Lídia não se levantaram. Estavam nus, deitados de costas como estátuas jacentes, nem sequer cobertos por um lençol, a morte, se tivesse vindo, encontrava-os oferecidos, plenos, que ainda há poucos minutos os seus corpos se tinham separado, arquejantes, húmidos de suor recente e dos íntimos derrames, o coração batendo e ressoando na pulsação do ventre, não é possível estar mais vivo do que isto, e de repente a cama estremece, os móveis oscilam, rangem o soalho e o tecto, não é a vertigem do instante final do orgasmo, é a terra que ruge nas profundezas, Vamos morrer, disse Lídia, mas não se agarrou ao homem que estava deitado a seu lado, como devia ser natural, as frágeis mulheres, em geral, são assim, os homens é que, aterrorizados, dizem, Não é nada, sossega, já passou, dizem-no sobretudo a si próprios, também o disse Ricardo Reis, trémulo do susto...

YASUNI KAWABATA , O PAÍS DAS NEVES

“O incêndio só crescia, mas visto do alto, sob o céu estrelado, era silencioso como um fogo de faz de conta. No entanto, era grande o temor causado pelo ruído das chamas impetuosas. Shimamura abraçou Komako.
– Não há o que temer!
– Não! Não! – desatou Komako a chorar, sacudindo a cabeça. Entre as mãos de Shimamura, seu rosto parecia menor que de costume. Suas pequenas têmporas tremiam.
Ela começara a chorar ao ver o incêndio, mas sem saber por que ela chorava, Shimamura continuou abraçando-a sem qualquer constrangimento”.