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CONTOS CORPORATIVOS

R.Colini

CONTOS CORPORATIVOS

Dilemas, confusões brasilianas, tentações, provocações morais.

“Era um ghost-writer jurídico, embora poucos soubessem que o que ele queria mesmo era ser um writer.
“Porque virou a noite trabalhando, foi para casa cedo e ganhou o dia seguinte de folga. Chegou cansado, e mais uma vez refletia sobre a fronteira deletéria que sentem aqueles que estão para fazer 40 anos, contabilizando seu pequeno cemitério de sonhos destituídos. Eram duas da tarde quando o diabo tocou sua campainha.
            – O diabo, não. Para falar a verdade, sou um assistente, que o diabo mesmo não trabalha...”
“...É que, além de sub-rogar os novos contratos, incluiu nos mesmos uma procuração, que lhe permitiria transferir a si os excedentes do negócio. Pacta sunt servanda.”

 

Trechos do conto ALMA, sobre a história de Arlindo, funcionário de um escritório de advocacia que saiu do emprego e iniciou um empreendimento insólito.

  

Dilemas, confusões brasilianas, tentações, provocações morais.

Coletânea de contos sem moral e cheia de impasses.

O texto abaixo não é bem um conto. É a introdução do livro, que mais ou menos prepara para o que virá.

 

Você é jovem. Conseguiu a proeza de entrar no estágio daquela empresa gigante, com capitais multitudinários.

Você namora e tem planos maiores do que pode alcançar nesse momento.

Finalmente te efetivam, e com o bônus vem o ônus. A tarefa que lhe cabe é acertar preços com os concorrentes no mercado privado. Você nem se toca sobre o que está fazendo, e segue a vida, afinal, não está sacaneando o setor público, graças a Deus.

Em uma mesa de bar, você conta sobre esse pequeno detalhe do seu emprego, e um amigo ou amiga, advogado ou advogada, arregala os olhos, e diz: – Você sabia que isso é crime?

Você faz um muxoxo, diz que apenas cumpre ordens, e muda de assunto. Mas entre as risadas que você compartilha quando o assunto já é outro, sente umas pontadas e um certo incômodo por ter ouvido aquela palavra. Que não ousa repetir. Que procura esquecer. Mas não consegue. Nos meses seguintes, quando por algum motivo você menciona a palavra, é sempre fora do contexto da empresa. Como no dia em que um amigo cita alguma notícia recente, e você responde, que crime bárbaro. Você mal percebe que sua voz possui uma entonação ligeiramente trêmula quando fala a palavra crime. Ou criminoso.

É impossível se livrar do desconforto. Porque ele não é em relação ao que você faz, mas porque sabe que, em breve, alguns limites terão que ser superados se você quiser seguir em frente na carreira.

Enquanto essa hora não chega, você pensa nos planos de morar junto, no carro que pretende trocar e nas oportunidades profissionais, que são o passaporte para as outras coisas.

A sua chance chega e você nem vacila. Sua vida toda tem sido uma preparação para esse salto qualitativo. Agora você manda mais. Não manda tudo; mas agora manda naquele que ocupa o cargo que até ontem que era seu.

Antes, quando cumpria ordens, você se limitava a preparar as propostas comerciais, devidamente malhadas e combinadas com os concorrentes. Propostas primorosas, bem redigidas, com layout profissional e imagem fortemente corporativa. Agora não. Você conversa direto com os concorrentes, senta com eles para combinar os preços e orientar os rumos do mercado. Quem executa são seus funcionários.

Você é uma rocha. Confiante e decidido. Não vacila. A culpa de tudo é a realidade tributária, a burocracia do país, e, afinal, a empresa exerce seu importante papel social ao criar empregos e distribuir riquezas. E também tem a convicção de que as margens que vocês combinam não são exageradas. Quer dizer... de fato são maiores que o normal, mas só um pouco, porque há limites. Afinal, se vocês carregarem demais nas tintas, os produtos importados podem invadir o mercado.

Nessa hora você faz de conta de que não se dá conta do fato de que sua empresa, assim como os concorrentes, dominam o mercado mundial e não tem interesse de exportar para o Brasil, porque isso seria o mesmo que atirar no pé.

Você recebe mais uma promoção e alimenta duas ideias: filhos e um novo apartamento. Nessa hora sabe que, se a empresa diminuir os resultados, seu bônus não vai atingir a altura de seus sonhos.

Então, você força mais os preços no cartel, e até seus amigos concorrentes acham que é um exagero. As metas para bônus são irreais e você agora contrata uma consultoria para comprar precatórios a preço de banana e economizar nos impostos. Na moita, porque a matriz poderia torcer o nariz, embora estejam gostando de seus resultados.

Não tem jeito de você conseguir a porra do bônus. Não tem mais para onde subir; os chefes acima de você são todos jovens. A presidência ou uma vice-presidência são metas inatingíveis. Você já frequentou a casa deles e sabe que eles moram bem pra cacete.

Agora, quando a palavra crime surge em uma conversa, você não sente mais aquele tremor feito das coisas incertas da consciência. Agora você sente raiva porque você faz o trabalho sujo e a alta direção mora bem pra cacete. Cada puta carro.

Agora você tem dois filhos e está fodido porque na sua posição não poderia deixar de colocá-los em uma escola que custa quase 4 K por mês. Fica puto quando combina o volume de matéria prima a ser produzido com os preços devidamente controlados, porque, mesmo assim, sente que é um executivo quase duro.

Agora, seu projeto de ingressar no setor público somente através de distribuidores terceirizados foi aprovado. Você fodeu o departamento que fazia isso, todos demitidos, porque provou para a presidência que essa história de se meter com o setor público pode trazer altos riscos criminais para a empresa.

Finalmente, você pode escolher os distribuidores que vão fazer as vendas para o governo, ajudar em suas margens, garantindo o extra da propina, e, também levar um por fora, porque, afinal, você merece um padrão de vida melhor, que nem os filhos da puta da alta direção.

Agora a empresa vai comprar um pequeno concorrente nacional que vêm crescendo e ameaçando bagunçar o mercado. Você faz de tudo para liderar as negociações, acerta um preço mais alto com o pequeno concorrente e morde uma grana alta. Agora sim, você tem condições de ombrear os gigantes da porra da vice-presidência.

Agora são tantas coisas acontecendo que seu maior problema é contabilizar seu dinheiro, coisa mais difícil que supunha. Recorre aos doleiros dos distribuidores que vendem para o setor público. São tantas as preocupações, que você fica frouxo no controle das informações sigilosas do cartel. Como se esquecesse que essa porra é um crime.

Pelo menos agora você mora bem pra cacete.

Agora fodeu. Ao mesmo tempo, como se fosse coisa das artes maléficas, um doleiro que você usava foi preso e um cliente descobriu um indício do cartel, que você e seus amigos, acostumados a anos de facilidades, deixaram escapar. O cliente entregou de bandeja para a polícia a porra toda.

E agora, depois de anos de trabalho, a matriz, que sabia tudinho sobre o que acontecia, manda uma auditoria externa sentar a lenha e investigar que bosta é essa de cartel. Na semana em que o executivo da matriz dá declarações que a empresa é ilibada e, que se teve cartel, foi coisa de gente descaminhada, você recebe uma intimação sobre o outro assunto.

Agora sim, você está todinho fodido.